26 de jan. de 2011

Artigo: Eventos de violência política: vulcões extintos ou apenas dormentes na AL?


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Eventos de violência política:
Vulcões extintos ou apenas dormentes na AL?

Marcelo Coutinho
Coordenador do LEAL
Janeiro de 2011

A história política da América Latina é geralmente contada como uma saga de instabilidades, conflitos e violência. Esta não deixa de ser uma visão correta da região em 200 anos de independência. De fato, foram inúmeros e repetidos golpes, quarteladas, levantes populares, quedas de presidentes, suspensões de direitos civis e políticos, repressões policiais e ainda algumas guerras civis bastantes sangrentas. Durante períodos autoritários, a violação dos direitos humanos assumiu contornos sombrios a partir do desaparecimento, tortura e morte de milhares de pessoas.

Com as transições para a democracia nos anos 1980, o quadro começou a melhorar. Mas ainda assim verificou-se uma série de episódios violentos, envolvendo grupos sociais e o próprio Estado. Tais distúrbios atingiam até mesmo algumas democracias mais estáveis e consideradas modelos àquela época, como a Venezuela. Vale recordar, por exemplo, o “Caracazo” em 1989, que matou quilíades de manifestantes venezuelanos, fortemente reprimidos nas ruas pelas forças oficiais de segurança. Esse foi outro trauma que não ficou sem consequência.

A verdade é que não houve na região um ano sequer sem eventos de violência política (EVPs). Alguns mais outros menos marcantes, porém todos com algum enredo de verdadeiras batalhas campais. Do Movimento Zapatista em Chiapas, em 1994, às guerras bolivianas da água e do gás, na primeira década do século XXI, os confrontos continuaram a gerar vítimas de todos os lados e a mudar novamente a paisagem política da América Latina. Dessa onda de movimentos sociais nasceram os “gobiernos de las calles”; governos mais nacionalistas, de inspiração popular, socialista ou simplesmente mais sensíveis às causas sociais.

Nas últimas décadas temos observado avanços institucionais importantes na região. Quase todos os regimes existentes hoje são democracias, com maior ou menor pluralismo, com liberdades civis e políticas e processos eleitorais regulares, o que não significa dizer que sejam democracias perfeitas. As soluções pretorianas para os conflitos políticos já não encontram maior apoio na América Latina como antes. Há o que se pode chamar de uma institucionalização das nossas democracias, ou ao menos uma estabilização política em alguns países que aprenderam a limitar os conflitos dentro do estado de direito.i Vivemos os que os acadêmicos anglo-saxões chamam de “the only game in town”.

Além de uma progressiva difusão das regras do jogo democrático, observam-se ainda sensíveis progressos econômicos. Na esteira da expansão global na última década, a América Latina cresceu a taxas médias significativas. A dependência da exportação de commodities nunca beneficiou a região tanto como agora, com a valorização desses produtos nos mercados internacionais. Em muitos casos inclusive já é possível falar em uma institucionalização econômica. Se as reformas liberais nos anos 1990 trouxeram problemas, também foram responsáveis por muitos ganhos assistidos hoje, uma vez que estabeleceram fundamentos institucionais duradouros. A combinação de estabilidade dos preços, crescimento econômico, políticas focadas e redução da pobreza e do desemprego fez diminuir bastante as revoltas sociais e suas repercussões. Apesar de serem observados também em países ricos, os EVPs estão correlacionados com o subdesenvolvimento e baixos índices de inclusão política.

Há um ambiente mais tranquilo na América Latina que foge ao padrão histórico. Não se sabe se isso é uma nova tendência ou somente um ponto fora da curva, à qual podemos voltar. Aparentemente, as condições mudaram, os conflitos arrefeceram e a temperatura política regional esfriou. Ainda que não possamos talvez falar em paz social, negociamos agora mais do que brigamos em um cenário menos quente e pressionado. A região apresenta sociedades mais estáveis, o que pode ser bom para todos. Porém, a menor frequência e intensidade dos EVPs significa que eles perderam relevância? São vulcões extintos ou apenas dormentes?

Embora os avanços políticos e econômicos tenham tirado força dos EVPs, nada garante que eles não possam eclodir novamente causando maiores danos. Isso por si só os torna fenômenos importantes de serem permanentemente monitorados e estudados. Além do mais, há muitas diferenças entre os casos examinados. Existem países mais estáveis do que outros. Países em que os avanços ainda são lentos ou duvidosos. Se na vulcanologia temos poucas certezas científicas até hoje, as erupções de natureza social são um desafio de difícil mensuração. Todavia, os EVPs mataram mais pessoas nas últimas décadas do que os vulcões em toda a América Latina.

Mesmo a democracia mais institucionalizada na região, o Chile, enfrenta dificuldades. Protestos e greve no sul do país por causa da elevação do preço do gás produziram a primeira crise de 2011, levando insegurança e algumas vidas. Aliás, o Chile também enfrenta crises de minorias étnicas, a exemplo de outros conflitos de populações originárias no arco indígena andino. A nossa capacidade de prever esse tipo de acontecimento é pequena. O que podemos e devemos fazer é registrar e analisar tais ocorrências, bem como os mecanismos usados para a estabilização dos conflitos, com especial atenção às suas vítimas.

A tarefa de identificar, classificar, caracterizar, comparar, buscar tipologias e associações dos EVPs com outras variáveis pode ajudar a prevenir mortes. Assim como os vulcanólogos, caçadores de tornados e tempestades ou sismólogos, os observadores de EVPs procuram a seu modo entender as causas, o funcionamento e os efeitos desse fenômeno, com o diferencial de se tratar de uma ciência social, com todas as suas particularidades já bastante discutidas. “Quanto mais conhecimento uma sociedade alcançar valendo-se do método científico, mais rica ela se torna” (p. 50).ii E quanto mais conhecimento sobre fenômenos como os EVPs, mais seguros provavelmente estaremos em toda a vizinhança.

Os EVPS não ocorrem apenas na América Latina, variam em gravidade, se manifestam de várias maneiras e sofrem mudanças ao longo do tempo. Uma de suas manifestações atuais mais problemáticas são os conflitos em torno do tráfico de armas e drogas. Embora estes não estejam no rol dos casos clássicos, estudados pela literatura especializada no assunto, que se dedicou na sua origem aos eventos com claras disposições políticas durante as ditaduras, é inegável o peso do narcotráfico nas sociedades contemporâneas. São conflitos entre grupos mais ou menos organizados que chegam a competir com o próprio Estado, no monopólio legítimo do uso da força física. Há vários relatos também de incursões desses grupos na vida política dentro dos países e nas relações transnacionais. No tráfico, a violência política e a violência social comum se confundem.

O mapeamento da violência política na América Latina é particularmente estratégico ao Brasil, cuja ascensão internacional tem trazido maiores responsabilidades regionais. É difícil imaginar que o Brasil possa de fato se tornar um poder emergente global ou liderança consequente, dentro de parâmetros atuais modernos, havendo em sua volta uma região deflagrada. Queira ou não, o país será chamado a responder por movimentos de fúria na América do Sul, mesmo que não seja a fonte de tais desestabilizações.

Focos de violência ainda persistem e outros poderão irromper no futuro, o que torna urgente o debate desse tema e a criação de instrumentos operativos em fóruns regionais como o Mercosul e a recém-criada Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). A Unasul já dispõe de um conselho de defesa regional, mas ainda poderia priorizar mais a prevenção e o equacionamento dos EVPs, começando por elaborar um sistema de alertas. Do mesmo modo, as agências federais de fomento à pesquisa e as áreas competentes das empresas brasileiras multinacionais que atuam na região deveriam reservar recursos consideráveis para os estudos destinados a compreender melhor um problema tão sério.

Como vetor de mudanças políticas, os EVPs estão geralmente ligados a aspectos negativos. Acarretam em mortos e feridos, desestabilizam a democracia, geram insegurança, afugentam capitais e turistas, problematizam o desenvolvimento, dificultam processos de integração regional e chegam a dissolver ou dividir nações. Por isso mesmo é objeto do acompanhamento da ONU e de outros agentes internacionais. Quanto mais próximos os países, maiores as chances de contágio entre eles pelos EVPs. Por outro lado, a integração regional é um fator estabilizador, já que também dissemina formas pacíficas de resolução dos conflitos (Peacekeeping). Nesse caso, o exemplo de estabilidade do Brasil é muito valioso para a região, embora seja um país também sujeito à incidência dos EVPs.

Definitivamente, não está descartado o risco de conflitos políticos violentos na América Latina. Desigualdades sociais, crises de abastecimento, escândalos de corrupção, colapso dos serviços públicos, devastação de recursos naturais, contrabandos e a própria volta da inflação, entre outros, estão entre os problemas que a região enfrenta e capazes de originar insatisfação popular e nova fase de lutas, aumentando a temperatura e a probabilidade da ocorrência de EVPs, nos seus mais variados níveis.

O conhecimento sobre esses eventos é extremamente útil para os atores políticos e econômicos, e também um estímulo à elaboração de hipóteses e conceitos, inseridos em uma já longa tradição de estudos sobre instituições, democracia e estabilidade política, aos quais se juntam temas como o regionalismo, transnacionalização, estados falidos, segurança internacional e países emergentes.

Não por acaso, o tipo de conflito violento estudado cada vez mais no campo das relações internacionais é de caráter doméstico, e não externo. A América Latina tem contenciosos fronteiriços, mas as guerras são eventos muito raros. O último confronto armado entre países foi em 1995, na guerra entre Peru e Equador. De lá para cá, no entanto, muitos embates internos continuaram a ocorrer e desestabilizaram com razoável frequência países inteiros ou áreas significativas dentro deles. Alguns desses conflitos atraíram ajuda humanitária, missões de paz e cooperação técnica. De tal modo que o estudo dos EVPs deve ganhar mais espaço na disciplina de relações internacionais, como objeto e unidade de análise.

Esta agenda de pesquisa está aberta, com preciosos desdobramentos práticos e teóricos. Alguns centros de pesquisa no exterior - como, por exemplo, o Instituto de Investigação de Conflitos Internacionais de Heidelberg - já realizam um trabalho nesta direção.iii Segundo o instituto europeu, 363 conflitos políticos foram contados em todo o mundo em 2010, dos quais foram seis guerras e 22 conflitos severos. Além disso, ocorreram 126 incidentes violentos esporádicos. Apesar de esses números impressionarem, houve pelo levantamento uma queda na violência em comparação ao ano anterior.

A leitura desses dados indica que o mundo ficou um pouco mais pacífico em 2010, e que os conflitos obedeceram a uma lógica regional, incitando-se mutuamente em um sistema relativamente integrado. A América Latina é uma das regiões em desenvolvimento menos conflituosas. No entanto, em que pese ter havido no continente uma redução das crises mais intensas, cerca de 15% dos conflitos no mundo continuam a acontecer na região. México e Colômbia foram os países mais críticos, sobretudo devido ao narcotráfico e grupos armados.

Todas essas informações, e muitas outras além delas, precisam agora ser aprofundadas e melhor examinadas, identificando padrões de ocorrência na América Latina, suas origens, circunstâncias, conseqüências, perfil de vítimas e medidas conciliatórias. Dados minuciosos ainda deverão ser coletados e organizados sistematicamente, sob o ângulo quantitativo e qualitativo, adotando ainda maior rigor no uso dos conceitos. Uma pesquisa de escopo regional como esta pode chegar a um grau de especificação mais difícil de ser alcançado em estudos que abrangem o mundo todo, e também pode gerar novas hipóteses.

Para desenvolver um sistema regional de prevenção e solução de conflitos será necessário antes conhecer em detalhes o problema dentro de uma série histórica recente, já com o ambiente político e econômico mais institucionalizado, conforme notamos anteriormente. Isso pode demonstrar tendências atualizadas, além de permitir o exame de casos comparados em profundidade. Podemos assim ajudar a salvar vidas e a construir um futuro de paz, enquanto aproveitamos para promover um instigante debate teórico nas relações internacionais.


i Ver Marcelo Coutinho (2008). Crises Institucionais e Mudança Política na América do Sul. Rio de Janeiro: Edição do Autor.

ii Trecho do Capítulo 5 sobre o Brasil, de Carlos Henrique Brito Cruz e Hernan Chaimovich. Relatório da UNESCO sobre Ciência 2010. http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001898/189883por.pdf

iii Instituto de Investigação de Conflitos Internacionais de Heidelberg (2011). Conflict Barometer 2010, 19th Annual Conflict Analysis. http://hiik.de/en/konfliktbarometer/pdf/ConflictBarometer_2010.pdf


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