17 de dez. de 2011

Artigo: "O Direito à Informação na América Latina"

A seguir, o quarto artigo do blog, que pode ser encontrado na aba "Publicações" do menu acima.


Lembramos que o conteúdo dos artigos é de responsabilidade de seus autores. O Leal não se responsabiliza, assim, pelo conteúdo dos mesmos.
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O Direito à Informação na América Latina

Hugo Borsani*



A liberdade de informação, hoje incluída no conceito mais amplo de direito à informação, é sem dúvida um dos elementos constitutivos da democracia. Filósofos e teóricos políticos clássicos como David Hume** , Alexis de Tocqueville*** ou Robert Dahl**** , incluíram a liberdade de expressão, e particularmente a liberdade de imprensa, entre as condições fundamentais a ser consideradas na hora de classificar um sistema político como democrático ou não. A relação entre o poder político (e econômico) e a liberdade de informação sempre foi complexa e difícil. Não por acaso, todo regime autoritário ao longo da história tem censurado ou diretamente proibido meios de comunicação adversos ou que não se alinham facilmente com os pontos de vista do governo, assim como controlado o tipo de informação a ser divulgada.

As ditaduras latino-americanas, ao igual que os diversos regimes autoritários e totalitários no mundo, têm sido exemplos nítidos das difíceis, e por momentos trágicas, relações entre o poder do Estado e a liberdade de expressão e informação. Porém, não é somente nos regimes autoritários que essa relação é difícil e por momentos de confronto. Provavelmente todo governo, mesmo democrático, se pudesse, controlaria o que é informado e o como é informado, procurando criar a melhor imagem possível do seu desempenho e obter assim amplo apoio da população.

Os meios de comunicação não estão livres também da pressão de interesses privados, próximos ou contrários ao governo de turno. A conjunção de poder econômico e meios de comunicação é tão avessa à liberdade de informação quanto a concentração de poder político e meios de comunicação. Para um bom funcionamento da democracia não somente é desejável independência do poder político e econômico, mas também pluralidade das fontes de informação. Hoje na América Latina as principais ameaças à liberdade de expressão são: o crime organizado, o autoritarismo dos governos e a concentração da mídia e o poder econômico.

O tema da liberdade da informação, ou como hoje é falado, o direito à informação, inclui uma ampla variedade de dimensões, todas elas objeto atual de debates e ações específicas. Entre as dimensões mais relevantes cabe destacar:
a) Liberdade de imprensa.
b) Distribuição da publicidade oficial.
c) Acesso à informação dos organismos públicos.
d) Uso dos meios estatais de comunicação por parte dos governos.
e) Concentração da propriedade dos meios de comunicação (privada ou publica).
f) Associação entre poder político e propriedade de meios de comunicação.
g) Normas de concessão de rádios e canais de TV.
h) Regulamentação sobre TV e radiodifusão comunitária.
i) Divulgação de propaganda eleitoral e pesquisas de opinião.
j) Regulação da internet.

No presente artigo fazemos referência à situação, na América Latina, das três primeiras dimensões dessa listagem: i) liberdade de imprensa, ii) distribuição da publicidade oficial (ambas dimensões vinculadas ao problema da censura ou censura indireta) e iii) acesso à informação pública.

O debate sobre a liberdade de expressão e o acesso à informação adquiriu renovado vigor nos últimos tempos, tanto a nível global quanto na América Latina. As reações pelas revelações de WikiLeaks, assim como as restrições à divulgação pela internet das revoltas populares nos países árabes e muçulmanos, ou as severa censura existente em regimes como o da China, outorgaram ao tema da liberdade de informar e de acesso à informação renovada centralidade mundial. Na América Latina, os enfrentamentos entre alguns governos e meios de comunicação privados (jornais e/ou redes de rádio e televisão) e propostas de regular os meios de comunicação com vistas a monitorar o conteúdo da informação, também contribuíram para que esse tema adquirisse centralidade política nesse inicio da segunda década do século XXI. Os atuais governantes de Argentina, Equador e Venezuela têm tido, e continuam tendo, fortes enfrentamentos com meios de comunicação privados. Nos dois últimos países citados, a censura aos meios privados opositores é aberta, e o enfrentamento pessoal dos presidentes Correa e Chávez com alguns meios de comunicação tem se constituído numa das marcas características dos seus governos. No Brasil, a liberdade de imprensa, e concretamente o regulação ou não dos meios de comunicação, foi um dos temas importantes da última campanha eleitoral presidencial. Porém, diferentemente da centralidade do tema nas décadas de 1960 e 1970, período das ditaduras militares na América Latina, o contexto político em que o mesmo se desenvolve agora é um de regimes democráticos, com maior ou menor grau de consolidação ou estabilidade política, mas com governos eleitos pela população na quase totalidade dos países da região.

i) Liberdade de imprensa. A liberdade de informação é um direito humano inalienável e essencial para as sociedades democráticas. A liberdade de informação foi reconhecida como direito humano fundamental pela ONU em 14 de dezembro de 1946 numa das primeiras resoluções adotadas pela Assembleia Geral desse organismo, precisando que “[a liberdade de informação] é a pedra de toque de todas as liberdades às quais estão consagradas as Nações Unidas” e que “as pessoas não podem tomar decisões efetivas sobre nenhum aspecto da sua vida a menos que estejam bem informadas”. Por isso a liberdade de expressão e o direito à informação são interdependentes. Esse mesmo conceito foi adotado e ampliado ou mais especificado na Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada pela OEA (1948), e na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (1969).

O tema da liberdade de imprensa, diretamente associado à liberdade de informação, é sem dúvida um tema polémico, especialmente quando se trata de mensurar a mesma. Para os governos que promovem políticas de regulação ou que tem desenvolvido uma oposição aberta a alguns meios de comunicação críticos a suas gestões (caso dos governos de Argentina, Equador e Venezuela), os meios de comunicação privados são considerados instrumentos da oposição política, aos que acusam de abuso de poder e de tergiversar a informação para desprestigiar governos de caráter popular. Esses governos fazem ênfase na concentração da propriedade (privada) dos meios, um fato real e também outro dos problemas que enfrenta o direito à informação na América Latina. Por outro lado, os meios privados, afetados pelas políticas desses governos, denunciam as tentativas de censura e monopolização da informação por parte dos Estados e com o objetivo de impedir críticas e denuncias sobre às gestões dos respectivos governos.

Atualmente existem dois organismos internacionais que mensuram anualmente a liberdade de expressão na região (e no mundo): a organização norteamericana Freedom House (FH), e a organização internacional Reporters Without Borders, ou Repórteres sem Fronteiras (RSF). Se bem ambas as organizações têm recebido críticas por falta de imparcialidade em algumas avaliações (concretamente de ser anti-Cuba), os índices por elas elaborados são considerados uma aproximação geralmente aceitável em relação à situação da liberdade de imprensa na maioria dos países. Assim, o índice de liberdade e democracia, também elaborado anualmente pela FH, é usado frequentemente no âmbito acadêmico e organismos internacionais. Cabe destacar que as avaliações de ambas as organizações nem sempre são convergentes, caso da lei de imprensa recentemente aprovada na Argentina, objeto de críticas por parte da FH, mas apoiada por RSF. Na Tabela 1 são apresentados os valores dos índices das duas organizações para os países da América Latina no ano 2010. Ambos os índices variam de 1 a 100, sendo 1 o máximo de liberdade e 100 total falta de liberdade. Na mesma tabela é incluído o Índice de Percepção de Corrupção, IPC, elaborado por Transparência Internacional, a organização mundial de combate à corrupção, que não recebe os questionamentos das duas outras organizações. O Índice de Percepção de Corrupção varia de 0 a 10, sendo 10 indicador de nenhuma corrupção, ou melhor, de percepção de não corrupção, e 0 indicador de máxima percepção de corrupção.


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O interessante na comparação dos três índices é que os três países melhor posicionados em liberdade de expressão na América Latina, segundo FH e RSF (Costa Rica, Chile e Uruguai) são também os três com menor percepção de corrupção segundo Transparência Internacional. A pesar de que os indicadores de liberdade de imprensa da tabela 1 não devem ser observados como medições isentas de questionamentos, a posição de Costa Rica, Chile e Uruguai entre os países de maior liberdade de imprensa está acorde com os estudos e informações disponíveis sobre o funcionamento da democracia e o respeito aos direitos humanos nesses países. Da mesma forma, não resulta um contrassenso que entre os países que registram os piores índices, estejam por um lado México e Colômbia (países com alto número de jornalistas assassinados por bandas criminosas ligadas ao narcotráfico) e por outro lado Cuba (governo não democrático e de monopólio Estatal dos meios de comunicação) e Venezuela (governo caracterizado por uma forte oposição aos meios de comunicação privados).

A relação entre liberdade de imprensa e percepção de corrupção observada na tabela 1 mostra que a relação entre alta liberdade de imprensa e baixa percepção de corrupção é alta. A única exceção notória de essa relação é Cuba, que aparece como o quarto país com menor percepção de corrupção, ocupando o ultimo lugar nos dois índices de liberdade de imprensa. Essa relação resulta lógica na medida em que a corrupção se alimenta da falta de transparência, assim como da falta de acesso e divulgação de informação. Em um continente com alto grau de corrupção, políticas destinadas a limitar, direta ou indiretamente, a liberdade de imprensa, tendem a favorecer um incremento da corrupção, dada a maior dificuldade de divulgação e circulação de opiniões críticas ou informações que possam afetar a imagem dos governos.

Atualmente, Argentina, Equador e Venezuela vivenciam um forte enfrentamento entre os respectivos governos e os meios de comunicação privados. Na Argentina, o governo de Cristina Kirchner, continuando a linha do seu marido e antecessor no cargo, Nestor Kirchner, mantém um forte confronto com alguns meios críticos a sua gestão, especialmente o Grupo Clarín. O governo de Hugo Chávez na Venezuela tem se caracterizado desde seus primeiros anos pelos conflitos com os meios privados. Entre eles cabe destacar a não renovação, em 2010, da concessão para continuar transmitindo à rede de televisão oposicionista RCTV, a mais antiga do país, com 53 anos de antiguidade. O único canal de abrangência nacional atualmente crítico ao governo, Globovisión, foi reiteradamente ameaçado de fechamento, e no passado mês de outubro, a Comissão Nacional de Telecomunicações de Venezuela multou esse canal em 2 milhões de dólares pela cobertura de um motim numa prisão que deixou um saldo de três mortos após intervenção de forças policiais. O canal foi multado por “conduta editorial” incluindo “apologia ao crime” além de fomentar “a ansiedade dos cidadãos” com essa cobertura. Em Equador, em 2011 o presidente Correa intensificou significativamente as denuncias contra o que qualifica de “abuso de poder” por parte de alguns meios críticos a sua gestão. Esse confronto adquiriu maior intensidade a partir do comentário do ex-diretor de opinião do jornal El Universal, quem em nota editorial chamou ao presidente Correa de “ditador”. O presidente mandou prender o jornalista e os diretores do jornal, acusando-os judicialmente de “injuria”. A decisão judicial, que acata a denuncia do governante e impõe prisão por três anos dos três jornalistas e uma multa de 40 milhões de dólares ao jornal, chama a atenção para outro dos grandes desafios atuais na região: a influência dos governos sobre os membros do Poder Judicial. No caso, a surpreendente sentença foi dada em um tempo recorde de apenas 33 horas para um processo cujos autos somavam mais de 5 mil páginas . *******

Numa declaração que pode ser considerada como uma síntese da percepção política dos três governos citados sobre o atual debate em torno da liberdade de informação, na recente reunião dos líderes da Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos (CELAC), no dia 02 de dezembro em Caracas, o presidente Rafael Correa pediu aos líderes presentes que lutem contra o que chamou de “gravíssimo problema planetário” representado pelos meios de comunicação privados. O presidente equatoriano criticou o que denominou como “abuso descarado do poder informativo para submeter os governos a não agirem em função de seus interesses”********. A principal justificativa para as diferentes intervenções dos governos para regular, controlar ou censurar os meios de comunicação que não lhes são favoráveis, é a falta de parcialidade desses últimos.

Imparcialidade e objetividade total, se bem constituem metas que devem ser seguidas por todas as sociedades, são metas inatingíveis, seja pelos meios privados quanto pelos meios estatais, que são comumente administrados como propriedade exclusiva dos governos. Precisamente outra das dimensões relevantes da liberdade de informação, e que começa a ser debatida cada vez com maior ênfase na região e no mundo, é o uso que os governos fazem dos meios de comunicação estatal, a falta de normativas sobre esse uso, e a baixa ou nula participação neles dos setores de oposição.

Considerando a dificuldade de atingir uma total objetividade na divulgação da informação, um dos objetivos fundamentais das democracias deve ser assegurar a pluralidade de informação e de opinião, sem dúvida outra das dimensões básicas do direito à informação. Trata se de outro dos grandes desafios das democracias latinoamericanas, frente ao avanço das duas tendências opostas e ao mesmo tempo adversas à liberdade de informação: por um lado a maior predisposição ao controle dos meios por parte dos governos, e por outro lado, uma tendência à concentração dos meios de comunicação privados. Parafraseando Tocqueville na sua análise da democracia na América recém independizada, podemos dizer que, da efetividade dos mecanismos de controle e freio frente a essas duas tendências, opostas mas convergentes em seus efeitos, depende que os páises da região atinjam maiores graus de liberdade democrática, ou enveredem na direção de uma “democracia tutelada”.

ii) Distribuição da publicidade oficial.

O controle ou a sanção dos meios de comunicação que resultam “incômodos” aos governos é frequentemente exercida a través da chamada “censura indireta”. A distribuição da publicidade oficial é uma das ferramentas de censura indireta utilizada pelos governos latinoamericanos, seja para obter coberturas jornalísticas favoráveis ou para desalentar abordagens críticas. Esse uso político da distribuição oficial é especialmente notório nos governos locais, cujos meios dependem muito mais dessa publicidade. Mas essa ferramenta também é utilizada pelos governos dos países para controlar ou punir meios de alcance nacional. Obviamente que as pressões em matéria publicitária provenientes do setor privado por parte de grandes empresas também constitue um sério problema para a liberdade de informação na América Latina.

No relatório El Precio del Silenciao elaborado pela Asociación por los Derechos Civiles da Argentina, e publicado em 2008********* ,sobre a distribuição de publicidade oficial em sete países latino-americanos, constatou que a legislação que define os procedimentos de compra de publicidade por parte do Estado é insuficiente para coibir a discriminação de meios não afins aos governos, e os processos de contratação transparentes e competitivos constituem exceções. Na Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Honduras e Uruguai (lista que inclui os três países com maior liberdade de imprensa da região) a publicidade oficial segue as normas de contratação do restante das compras do Estado, sem normas específicas, e o favorecimento aos meios afins aos governos por essa via não é infrequente. No Peru existe uma lei nesse sentido, mas com disposições muito vagas e gerais, o que a faz ineficiente. No Uruguai, a distribuição da publicidade oficial melhorou significativamente a partir do governo do ex-presidente Taberé Vázquez. Porém, a toma de decisões em matéria de publicidade continua sendo arbitrária, algo possível num marco legal não adequado.

Na Argentina, entre 2006 e 2007, período de cobertura do informe citado, a quantidade de espaço publicitário contratado no jornal Página/12, afim ao governo do ex-presidente Kirchner (e da atual presidenta Cristina Fernandez de Kirchner), foi altamente desproporcionado em relação à circulação do mesmo. Segundo dados do governo, no primeiro trimestre de 2007, Página /12 recebeu aproximadamente U$S 3 milhões em publicidade do governo nacional, um 82% mais que a recebida pelo jornal Clarín, o de maior venda e circulação no país. Essa diferença não se justifica pela quantidade de números publicados nem perfil ou nicho de leitores, critérios frequentemente utilizados na toma de decisões para contratação de publicidade. Essa política tem continuado no governo de Cristina Fernandez de Kirchner e é conhecido o enfrentamento entre o atual governo argentino e o grupo Clarín. Da mesma forma, a revista semanal Notícias, uma das mais críticas do governo dos Kirchner, com uma circulação de quase 50.000 exemplares, não recebeu nenhuma publicidade oficial no ano 2007. Em contraste, sua competidora mais próxima, Veintitres, com uma edição de menos da metade, 22.800 exemplares, obteve U$S 11.000. O semanário Debate, com uma circulação muito menor e por isso não medida pels Instituto Verificador de Circulaciones, IVC, obteve U$S 120.000 no mesmo período.

Como um exemplo de que a discriminação de meios críticos aos governos na América Latina não esta restrita a um determinado perfil ideológico ou político, cabe citar a informação referente o governo de ex-presidente Álvaro Uribe na Colômbia. Entre 2005 e 2007, o governo de Uribe comprou espaços publicitários no jornal econômico La República, sempre favorável a suas políticas, não justificados pela posição em venda ou em leitura desse médio. Segundo medições amplamente aceitadas na Colômbia sobre quantidade de leituras de quatro grandes jornais nacionais, La República ficou em quarto lugar no período analisado, com uma quantidade estimada em 22.000 leitores diários. O jornal Portafolio, também especializado em temas econômicos teve aproximadamente o dobro de leitores, mas o governo contratou um espaço mais de seis vezes menor que o contratado no La República. As diferenças foram ainda maiores se comparado com o principal jornal do país, El Espectador, mais crítico do governo de Uribe e que incluiu nesse ano ampla cobertura de informes sobre presuntos contatos entre grupos paramilitares e membros do governo. A análise do espaço da publicidade oficial constatou que La República teve publicidade oficial em um espaço cinco vezes maior que El Espectador.

A distribuição da publicidade oficial é uma das ferramentas frequentemente utilizadas pelos governos latino-americanos como forma de exercitar uma “censura indireta”, incluso naqueles países com bons índices de liberdade de imprensa e percepção de corrupção. A magnitude real desse fenômeno, assim com os efeitos do mesmo no perfil das democracias latinoamericanas, constituem pautas de pesquisa a ser desenvolvidas.


iii) Acesso à Informação. Junto com a liberdade de imprensa, o acesso à informação sobre das diferentes entidades que formam o Estado, constitui um dos aspectos fundamentais da liberdade de informação e vem adquirindo cada vez maior relevância. Democratizar esse direito fomenta um clima político de transparência e participação, bases do conceito de democracia. Em 1990, somente treze países tinham adotado leis específicas sobre acesso à informação pública. Dos treze países, somente um, Colômbia, estava na América Latina. Porém, a legislação colombiana, que ainda se mantêm inalterada, contem considerações muito gerais sobre o direito à informação e requer de maior especificidade. Nas últimas duas décadas mais de oitenta países em todo o mundo têm adotado leis sobre o direito à informação, onze deles na América Latina**********.

Na tabela 2 se detalha a situação em cada um dos países da região, indicando o ano de aprovação da legislação específica sobre acesso à informação. Chile, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai, contam atualmente com leis que especificam sobre diferentes aspectos tais como os prazos das instituições públicas para responder às solicitações de informação, a informação que deve ser divulgada e atualizada nos sítios web das respectivas instituições e organismos públicos, os órgãos encarregados de promover e proteger esse direito e suas potestades, os procedimentos e critérios para determinada informação pública não ser divulgada, etc. No caso da Argentina houve um decreto presidencial (em 2003), além de existir legislação específica em algumas das unidades políticas sub-nacionais (províncias). Em El Salvador a lei já foi aprovada no Congresso, faltando somente ser homologada pelo presidente. Em todos os casos trata se de leis aprovadas com posterioridade ao ano 2000, com exceção da legislação colombiana (aprovada em 1985, como mencionado). Os países que não contam ainda com uma lei específica que regulamente o direito de acesso à informação (Bolívia, Brasil, Costa Rica, Paraguai, Venezuela), garantem o mesmo nas suas respectivas constituições, mas em termos gerais. Na Bolívia e no Brasil uma lei sobre o tema está em tramitação no momento no âmbito do Legislativo.





A aprovação de uma legislação específica sobre o acesso à informação pública na maioria dos países latinoamericanos na última década constitui obviamente um avanço em matéria de direito de informação, e conseqüentemente também em matéria de direitos humanos. Impõe se agora, além da necessidade de legislação semelhante em todos os países da região, a necessidade de avaliar a efetividade da mesma.

Os três temas abordados, liberdade de imprensa, distribuição da publicidade oficial e acesso à informação, assim como os demais temas vinculados ao direito à informação, têm, ou podem ter, efeitos no funcionamento e no desempenho de um regime político democrático, entre os quais podem ser citados os resultados eleitorais das diferentes visões políticas e seus respectivos partidos políticos, e a possibilidade da alternância política no poder, uma das características básicas de uma democracia moderna e consolidada. O presente artigo faz parte da justificativa de um projeto de pesquisa incorporando as diferentes dimensões do direito à informação na análise do desempenho das instituições democráticas na região.




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Notas:

* Doutor em Ciência Política, Iuperj. Professor de Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense e no Programa de Pós-graduação em Sociologia Política dessa universidade. Membro do LEAL.

** Hume, David. Ensaios Morais, Políticos e Literários. Rio de Janeiro, Topbooks, 2002.

*** Toqueville, Alexis. A Democracia na América. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2004.

**** Dahl, Robert. A Poliarquia: participação e oposição. São Paulo, Edusp, 1999.

***** A metodologia da Freedom House inclui 23 questões e 109 indicadores divididos em três grandes categorias: a) contexto legal (leis e regulações que podem influenciar o conteúdo da informação divulgada, uso dessa legislação pelos governos), b) contexto politico (independência editorial de imprensa estatal e privada, acesso à informação e fontes, censura oficial e auto-censura, diversidade de noticias, capacidade de jornalistas nacionais e estrangeiros para trabalhar livremente, intimidação de jornalistas pelo Estado ou outros atores políticos, e c) context econômico (propriedade dos médios, transparência, concentração da propriedade, custos de produção e distribuição, efeitos da situação econômica na sustentabilidade dos meios de comunicação).

****** O índice de Repórteres Sem Fronteiras esta elaborado em base a um questionário com 40 questões. Inclui assassinatos, ataques físicos e ameaças contra repórteres, censura e confisco de jornais. Inclui também o grau de impunidade dos responsáveis pelas violações à liberdade de imprensa, auto-censura, pressões financeiras e legislação. O questionário é enviado a 15 organizações para a liberdade de imprensa em todo o mundo, uma rede de 130 correspondentes, assim como a jornalistas, pesquisadores, juristas e ativistas dos direitos humanos.

******* Estadão.com.br, 03/12/11

******** Estado de São Pualo, edição digital: Estadão.com.br, 03/12/2011.

********* El Precio del Silencio, Asociación por los Derechos Civiles / Open Society. Buenos Aires, 2008

********** Mendel, Tobby. El derecho a la información em América Latina. UNESCO, 2009.

30 de out. de 2011

V Rodada Latino-Americana: Internacional

V Rodada Latino-Americana: Rodada Internacional


28 de Novembro (segunda-feira)

Auditório da Escola de Serviço Social

Praia Vermelha

UFRJ

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Programação:


10:00 - 12:00 - Workshop

"Violência nas Democracias Sul-Americanas"

Apresentação e discussão dos resultados parciais da pesquisa elaborada pelo Laboratório de Estudos da América Latina (LEAL)


12:30 - 14:30 - Pausa para almoço


14:30 - 17:30 - V Rodada Latino-Americana: Internacional


"Política, Sociedade e Direitos Humanos na América Latina"

Coordenação: Marcelo Coutinho

Professor de Relações Internacionais

(LEAL - NEPP-DH - UFRJ)


  • "Impactos sociais e políticos dos governos de esquerda na América Latina"

    Constanza MoreiraDoutora em Ciência Política e Senadora do Parlamento Uruguaio

  • "Mudanças e Continuidades nas Estruturas Sociais da América Latina"

    Patrícia Rivero - Professora do NEPP-DH/UFRJ e Pesquisadora do LEAL e GESOC

  • "Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e sua Influência na Legislação Latino-Americana"

    Carlos Juárez CentenoProfessor da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina.

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Contamos com a sua presença!


Observações:
  1. A primeira e terceira palestras serão realizadas em espanhol
  2. Serão entregues certificados de presença para os ouvintes
  3. Não é necessária a inscrição
  4. Qualquer dúvida envie um email para: lealufrj@gmail.com




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15 de ago. de 2011

Pedimos a atenção para a mudança do local onde será realizada a IV Rodada. A mesma será no auditório da Escola de Serviço Social, também na Praia Vermelha. Gratos pela atenção.

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IV Rodada Latino-Americana do LEAL

Organização: Laboratório de Estudos da América Latina (LEAL)
Coordenação: Professor Marcelo Coutinho


Palestra:

“América Latina e a Desigualdade Internacional”


Prof. Luis Manuel Rebelo Fernandes

Professor do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia e Presidente da FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos durante o governo Lula.



14h30

22 de Setembro (quinta-feira)

Auditório da Escola de Serviço Social

Praia Vermelha

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Contamos com a sua presença!


Observações:
  1. Serão entregues certificados de presença para os ouvintes
  2. Não é necessária a inscrição
  3. Qualquer dúvida envie um email para: lealufrj@gmail.com

21 de jul. de 2011

Artigo: Círculos viciosos rodeando os alimentos

Artigo: "Círculos viciosos rodeando os alimentos"

A seguir, o quarto artigo do blog, que pode ser encontrado na aba "Publicações" do menu acima.


Lembramos que o conteúdo dos artigos é de responsabilidade de seus autores. O Leal não se responsabiliza, assim, pelo conteúdo dos mesmos.
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Círculos viciosos rodeando os alimentos


Marcelo Coutinho*


Para alguns analistas, o trunfo do Brasil com a valorização das commodities não seria apenas conjuntural, já que o consumo da Ásia vai levar ainda muito tempo, mantendo, portanto, altos os preços e as demandas por alimentos. Por sua vez, os bens industriais não devem voltar a se valorizar tão cedo com a sua oferta abundante. Mesmo que em alguns anos o mundo volte a crescer fortemente, a produção e a concorrência industrial continuarão grandes, preservando os termos de troca a nosso favor.


Existem pelos menos três círculos viciosos nos quais o Brasil se insere de maneira integrada que valeria a pena considerar antes de chegar a qualquer conclusão sobre o assunto: os círculos financeiro, produtivo e ambiental. A soma desses anéis problemáticos relacionados aos mercados mundiais de alimentos sugere que estaríamos na verdade transformando necessidade econômica em virtude, isto é, substituindo a produção industrial pelas grandes monoculturas.


O Brasil financia seu déficit externo com dinheiro de fora. Uma cascata de capitais valoriza o real, destrói a indústria e aprofunda ainda mais a nossa especialização em commodities, que perdem, contudo, rentabilidade nas exportações devido ao câmbio. Como resultado, mesmo superavitária, nossa balança comercial não consegue fazer frente aos déficits em conta corrente, impulsionados entre outros pela farra do consumo em dólar barato de brasileiros no exterior. Assim, reforçamos o círculo de dependência de capitais externos.


Uma queda abrupta na oferta de crédito em consequência de moratórias seriais em outros países (Grécia, Portugal e Espanha, por exemplo) enfartaria a economia brasileira. Como remédio, duras doses de nossas reservas internacionais e mais juros para conter a inflação. Em um cálculo por baixo, podemos supor que se em um cenário inercial o défict externo brasileiro alcançará 60 bilhões de dólares em 2011, em um ambiente de crise esse rombo triplicaria, chegando a mais da metade das reservas. Não seria difícil nesse caso imaginar especulações sobre a nossa economia também.


Além disso, a valorização dos alimentos nos mercados globais motiva os agentes econômicos a procurarem novas fontes de abastecimento e desenvolvimento. Países ricos e pobres têm motivos de sobra para assegurar comida à sua população. O segundo círculo pernicioso decorre aí das pressões produtivas. A valorização dos alimentos incentiva a entrada de novos produtores que aumenta a concorrência, gera mais especialização e diminuem os preços.


Mas todos esperam mesmo é que o Brasil, sobretudo, aumente sua produção de alimentos para atender a demanda. Não há como o país se negar a isso, seja por razões humanitárias ou econômicas. O problema é que já poderemos nos encontrar em estágio avançado de desindustrialização. Com tanta especialidade produtiva, as rodadas comerciais da OMC se tornaram obsoletas. No armazém chinês erguido na África e agora na América Latina, o Brasil se situa em três prateleiras: soja, ferro e petróleo.


As pressões internacionais para uma regulamentação das commodities se intensificaram. Com o apoio do Brasil, o G-20 vai controlar esses mercados. Todos os esforços estando sendo feitos para que os preços caiam. Curiosamente, a aprovação da regulamentação dos alimentos se deu antes da financeira. Isso demonstra o quão frágil é na verdade a nossa posição na divisão internacional do trabalho.


O novo diretor-geral da Organização para Agricultura e Alimentação (FAO), José Graziano, já alertou que o Brasil precisa honrar seus compromissos de produzir mais alimentos. A insegurança alimentar também impõe limites aos novos termos de troca, levando em consideração ainda o meio ambiente. Com o novo código florestal, temos visível, enfim, o terceiro círculo vicioso: quanto mais danos ambientais, mais mudança climática, mais fome, mais flexibilidade para a agricultura, mais danos ambientais. O Brasil está no meio destes círculos e em todas as suas partes.


*Marcelo Coutinho é professor de Relações Internacionais de UFRJ e do IUPERJ. É coordenador do Laboratório de Estudos da América Latina (LEAL).

26 de mai. de 2011

III Rodada Latino-Americana do LEAL - 17/06/2011

III Rodada Latino-Americana do LEAL

Organização: Laboratório de Estudos da América Latina (LEAL)
Coordenação: Professor Marcelo Coutinho




Programação:


Expositores:

Joana Vargas (UFRJ) - Violência e narcotráfico na América Latina

Eurico Figueiredo (UFF) - Desafios estratégicos brasileiros no primeiro quartel do século XXI

Alexander Zhebit (UFRJ) - Segurança internacional na América do Sul

Miriam Saraiva (UERJ) - Política externa e integração sul-americana



14h30

17 de Junho (sexta-feira)

Auditório do Anexo do CFCH

Praia Vermelha


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Contamos com a sua presença!


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EVENTO FECHADO - PALESTRA: "PENSAMIENTO LATINOAMERICANO E INTEGRACIÓN INTELECTUAL: UNA PROPUESTA"
EDUARDO DEVÉS-VALDÉS


Quinta-feira - 16/06
18h30
Auditório da Decania do CFCH
Praia Vermelha - UFRJ

Presentación del autor: Eduardo Devés-Valdés

Doctor en Filosofía por la Universidad de Lovaina, Doctor en Estudios
Latinoamericanos por la Universidad de Paris III; especialista en
pensamiento latinoamericano y pensamiento de las regiones
periféricas; investigador y encargado del Programa de Estudios
Posdoctorales del Instituto de Estudios Avanzados de la Universidad de
Santiago de Chile, profesor del Doctorado en Estudios Americanos de la
misma universidad; ha publicado más de 150 trabajos entre los que se
destaca El pensamiento Latinoamericano en el siglo XX entre la
modernización y la identidad, Tomo I: Del Ariel de Rodó a la CEPAL
1900-1950, Tomo II: Desde la CEPAL al neoliberalismo 1950-1990, Tomo
III: Las discusiones y las figuras del fin de siglo. Los anos 90s y
también El pensamiento africano sud-sahariano en sus conexiones y
paralelos con el latinoamericano y el asiático; ha enseñado en
universidades y otras instituciones académicas de América Latina como
también de la U.E. y USA; ha realizado estadías de investigación en
diversas ciudades de América, Asia, África y Europa, ha realizado
conferencias, charlas o presentado trabajos en unas 100 instituciones
de educación superior de América, Asia y la UE. Se encuentra entre los
fundadores de la Internacional del Conocimiento. Para más información
ver www.universidaddesantiago.cl y allí Instituto de Estudios
Avanzados.






Relembramos que trata-se de um evento fechado.



16 de mai. de 2011

Artigo: "A Diplomacia Cultural entre Brasil e Argentina: uma crítica à tradicional rivalidade buscando estratégias de cooperação regional"

A seguir, o terceiro artigo do blog, que pode ser encontrado na aba "Publicações" do menu acima.

Ou clique aqui para fazer o download em .pdf

Lembramos que o conteúdo dos artigos é de responsabilidade de seus autores. O Leal não se responsabiliza, assim, pelo conteúdo dos mesmos.
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A Diplomacia Cultural entre Brasil e Argentina: uma crítica a tradicional rivalidade buscando estratégias de cooperação regional

Raquel Paz dos Santos *

Resumo:

O presente estudo desenvolve uma nova perspectiva das relações Brasil-Argentina a partir da análise de sua dimensão cultural entre os anos de 1930-1954, procurando incentivar a aproximação bilateral através de projetos de cooperação intelectual, científica e artística, visando desfazer imagens negativas e criar um sentimento de fraternidade entre brasileiros e argentinos. Essa prática também foi estimulada entre os demais países da América do Sul, entendendo que uma maior cooperação contribuiria para o fortalecimento da região, objetivando uma futura integração econômica.

Palavras-chave: cultura – diplomacia - cooperação – integração regional

Abstract:

This study build up a new perspective of the relations between Argentina and Brazil reviewing its cultural dimension from 1930 to 1954, seeking to encourage bilateral approximation with intellectual, scientific and artistic cooperation, aiming to transform negative images and establish a feeling of brotherhood between Brazilians and Argentines. This action has also been stimulated among other South American countries, meaning that a major cooperation would strengthen the region, with the objective of a future economic integration.

Keywords: culture – diplomacy - cooperation - regional integration

I. Introdução

Analisando a cultura como um elemento de cooperação e, conseqüentemente, favorecendo uma maior aproximação e entendimento entre os países, este estudo busca desenvolver uma análise das relações culturais entre Brasil e Argentina durante os anos de 1930 a 1954. Durante esses anos buscou-se promover uma aproximação entre os dois países através de projetos de cooperação intelectual, cientifica e artística, objetivando desfazer imagens negativas e criar um sentimento de fraternidade entre brasileiros e argentinos, e também em relação aos demais países da América do Sul. Propõe-se assim uma nova diretriz interpretativa da história dessas relações ao afastar-se do tradicional paradigma Realista 1 e apóia-se nas recentes reflexões teóricas relacionadas ao Construtivismo 2 e as Relações Culturais Internacionais.

No decorrer do período aludido, houve momentos de forte aproximação política e econômica entre os dois países. Assim, visando consolidar esses vínculos, promoveu-se um expressivo intercâmbio entre as duas sociedades, através da diplomacia cultural e de diversos setores da sociedade civil.

Para analisar o vasto universo dessas relações, utilizo a documentação referente às missões científicas e artísticas, às exposições de arte e de literatura, às traduções de livros de escritores argentinos e brasileiros para o português e o espanhol, às mostras de livros e de turismo, aos Institutos Culturais, às escolas “argentinas” e “brasileiras”, que procuraram estimular o sentimento de fraternidade bilateral e continental, aos intercâmbios sindicais, etc. Esses diferentes “embaixadores” da cultura argentina e brasileira no país vizinho, independente de suas filiações ideológicas, estiveram imbuídos pelo ideário americanista de valorização das raízes culturais latino-americanas e permaneceram convictos de que a cooperação entre os dois países contribuiria para o progresso e o desenvolvimento mútuos.

Por isso, na concepção de certos setores governamentais, grupos econômicos e intelectualidade, tornou-se fundamental substituir o paradigma da rivalidade pelo da cooperação. Na realidade, esses dois paradigmas caminharam juntos, ao longo das décadas de 30 e 50, evidenciando toda a complexidade dessas relações.

A maior parte desses projetos culturais foi patrocinada pelo Estado, contando, em alguns momentos, com o apoio da iniciativa privada, como bancos, setores da imprensa e do comércio, etc. Nesses casos, a diplomacia e os órgãos pertencentes ou que tinham algum tipo de financiamento governamental – como os Institutos Culturais, as Academias de Medicina, História, Belas Artes, Museus Históricos, Museus Nacionais de Belas Artes, Bibliotecas Nacionais, universidades e escolas públicas, etc. –, desenvolveram suas ações culturais no país vizinho, tendo, geralmente, o apoio das Embaixadas e permanecendo em consonância com os interesses estatais.

Entretanto, isso não pode ser visto como uma regra, pois muitos desses grupos, como os intelectuais, valeram-se dos recursos públicos para difundir e publicar seus estudos no país vizinho, independente de qualquer convergência com as políticas governamentais. Os médicos argentinos e brasileiros promoveram a cooperação bilateral mais intensa desse período, aproveitando ocasiões como congressos, palestras e missões científicas para intercambiar conhecimentos de sua área profissional. Assim, não estavam, obrigatoriamente, preocupados com os interesses políticos e econômicos que justificavam os significativos investimentos de seus governos no fomento da cooperação cultural. Vale ressaltar que diversos desses agentes culturais realizaram uma ação espontânea na sociedade vizinha.

Dessa forma, o presente estudo faz duas contundentes críticas ao paradigma realista, que influenciou consideravelmente a historiografia das relações argentino-brasileiras. Primeiramente, evidencia que o Estado não atua de forma exclusiva nas Relações Internacionais. O complexo trânsito simbólico entre as duas sociedades demonstrou que vários grupos sociais tiveram uma atuação expressiva na cooperação cultural. Uma segunda crítica se refere ao fato de que o estudo das relações culturais entre os dois países revelou novas dimensões da realidade não contempladas pela análise realista. Ao valorizar apenas os aspectos políticos e econômicos, numa perspectiva de uma permanente disputa geopolítica, não foi capaz de identificar os processos de cooperação entre os dois países.

II. Diplomacia Cultual: uma reavaliação das relações argentino-brasileiras

Os fatores que impulsionaram uma aproximação do Brasil com os países da região estão relacionados à crise do liberalismo e do capitalismo nos anos 30. Diante da fragilidade de suas economias agro-exportadoras, seus governos perceberam a necessidade de estabelecer uma relação de cooperação mútua para superarem suas dificuldades econômicas. Momento no qual a América Latina passou a reivindicar um modelo próprio de desenvolvimento associado ao projeto de uma integração econômica no qual Argentina e Brasil foram vistos como importantes lideranças no continente sul-americano. Além disso, foi crescente a complementaridade entre suas economias.

Amado Luis Cervo (2001:23-61) assinala também que essa nova conjuntura provocou uma mudança no posicionamento externo dos Estados latino-americanos, passando a implementar profundas reformas em suas chancelarias, gerando uma nova concepção de diplomacia que Cervo define como “desenvolvimentista”. Segundo o autor, no período compreendido entre os anos 1930-1947, observou-se o abandono do paradigma “liberal conservador” e o esboço do “Estado desenvolvimentista”. Os efeitos da crise capitalista de 1929 teriam estimulado o processo de modernização econômica da região, que passou a ter uma grande intervenção estatal para superação de suas dificuldades e promoção do seu desenvolvimento. Nesse contexto, toda a estrutura administrativa foi reformada para se tornar mais eficiente e se adequar às novas necessidades de seu país. Dessa forma, a estrutura dos Ministérios das Relações Exteriores passou por uma série de transformações objetivando maior profissionalização e vinculação da diplomacia às metas definidas pelo Estado.

Além dessas transformações, a política externa dos governos da região também foi influenciada pela emergência do tema cultural. Nos anos 20, a Sociedade das Nações defendia que para se evitar um novo conflito entre os países, era necessário ampliar não apenas a cooperação política e econômica entre eles, mas também estimular o conhecimento da história e da cultura dos países vizinhos, contribuindo assim para desfazer visões distorcidas ou preconceituosas. Tal fato estimularia a boa convivência e o relacionamento pacífico entre os povos. Em função disso, a cultura passou a fazer parte da agenda internacional a partir dos anos 30, nesse sentido as reformas desenvolvidas no Itamaraty pelo governo Vargas foram de fundamental importância para imprimir esta nova vertente na política externa, pois difundir as “coisas brasileiras” a nível internacional, fazia parte de seu projeto nacionalista 3.

O ponto inicial da cooperação cultural entre os dois países foram os acordos e convênios entre os presidentes Augustín Justo e Getúlio Vargas, firmados entre as visitas presidenciais de 1933 e 1935. Rosendo Fraga enumera seu conteúdo:

[...] Diez de estos acuerdos se refieren a temas económicos y comerciales. Se tratan asuntos como navegación marítima y aérea, el tránsito, el turismo, el comercio de productos concretos, la cooperación en productos comunes como la yerba mate, las medidas de sanidad vegetal, etc. Los temas políticos están presentes en cuatro tratados, dos referidos a extradición, otro a las luchas civiles y sus repercusiones en los respectivos países [...] un intento de integración en el campo educativo y cultural [...] Los cinco tratados referidos a esta área así lo demuestran, estos son: convenio de intercambio artístico, revisión de los textos de enseñanza de historia y geografía y el intercambio de profesores y alumnos. (Fraga, 2000:419)

Esses tratados bilaterais representaram um divisor de águas nas relações argentino-brasileiras, até então predominantemente caracterizadas por atritos políticos e econômicos que fomentavam a imagem da rivalidade. Em seu diário Vargas fez anotações sobre sua visita à Argentina que evidenciavam essa nova fase de suas relações:

Nossos militares apreciaram as demonstrações de apreço que receberam de seus colegas [...] onde esperavam encontrar desconfianças e restrições por certas intrigas desnecessárias [...] a visita teve um grande efeito política de aproximação, de conhecimento recíproco e de melhor compreensão. Para simpatizar é preciso compreender. (Vargas: 1935)

“Para simpatizar é preciso compreender” foi um princípio importante no direcionamento dos projetos de intercâmbio artístico e intelectual com a Argentina que tiveram início no governo Vargas e é muito significativo para a compreensão do papel dos embaixadores, dos intelectuais de ambos os países durante este período. Essa política também foi estendida aos países vizinhos, permitindo a adesão aos convênios e acordos cultuais assinados entre Justo e o presidente brasileiro 4. Obviamente, tal política estava relacionada a interesses econômicos e políticos na região, mas eles não a esgotam.

Ambos os encontros tiveram, como horizonte, as conferências americanas internacionais que se realizariam imediatamente depois, frente às quais os dois governos adotaram posições comuns. Justo visitou o Rio de Janeiro duas semanas antes da VII Conferência Interamericana de Montevidéu, no ano de 1933. Quando Vargas foi a Buenos Aires, em 1935, a capital argentina sediava a Conferência Pan-americana de Comércio. Posteriormente, esses acordos e convênios foram ratificados e outros, de mesma natureza, foram assinados ao longo dos anos 40 e 60. Além disso, toda uma estrutura foi montada – como a criação de instituições para difusão cultural no exterior, convocação e seleção de intelectuais e especialistas em diversas áreas para promoção do intercâmbio, liberação de recursos financeiros, etc. -, pelos governos de ambos os países para viabilizar e executar diferentes projetos de cooperação cultural.

Em tal conjuntura, o discurso antiimperialista teve grande eco entre vários setores das classes dominantes e intelectuais da América Latina. O imperialismo, sobretudo o norte-americano, foi alvo de inúmeras críticas por parte de grupos de diferentes tendências ideológicas – conservadores, reformistas, progressistas e revolucionários. Todos esses segmentos políticos elaboraram distintos projetos para a superação dos graves problemas políticos, econômicos e sociais de seus países, articulando a promoção do desenvolvimento regional com o chamado “continentalismo”.

No âmbito cultural, esse ideário americanista pautou-se na valorização das raízes culturais latino-americanas, visando à afirmação de uma nova estética, na qual a “mestiçagem”, típica dos povos da região, deixaria de ser símbolo de “inferioridade racial” de países supostamente incapazes de alcançar a civilização e o progresso, como condenavam as teorias racistas européias. Dessa forma, percebe-se que, para que a América Latina emergisse no cenário internacional como desenvolvida e moderna, seria fundamental a construção de uma nova identidade cultural. Essa última deveria romper com as visões estigmatizadas e preconceituosas da região. Num contexto de maior cooperação entre os seus países, o intercâmbio artístico e intelectual passou a ser concebido como um fator importante em prol do desenvolvimento comum, do conhecimento mútuo, o que consolidou vínculos comerciais e políticos.

Mesmo diante dessa nova postura, a cooperação política, econômica ou cultural com os Estados Unidos não foi de forma alguma excluída pelos governos e setores interessados em reformas. Procurou-se intensificá-la, mas a partir de novas bases. Ou seja, romper com a tradicional subserviência da região aos interesses norte-americanos, a fim de propor formas de cooperação, sobretudo, comerciais e tecnológicas que contribuíssem para o crescimento e o progresso da América Latina.

Um exemplo desse posicionamento foi à política externa adotada pelo governo brasileiro. A partir dos anos 1930 à entrada no esforço de guerra em 1942, desenvolveu um processo de barganha pendular, entre as perspectivas de alinhamento com a Alemanha ou com os EUA, obtendo enormes benefícios para seu comercio exterior e industrialização, caracterizando o que Gerson Moura (1980:56) definiu como eqüidistância pragmática. Sua posterior decisão em apoiar o governo norte-americano não estava desassociada dos interesses nacionais, pois trouxe grandes benefícios para o país com a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional em 1943, o maior complexo siderúrgico da América Latina, equiparação e treinamento das Forças Armadas. Contudo, não se desvinculou de sua política regional.

Na década de 1940, o convite feito pelo Itamaraty a Gilberto Freyre para elaborar a política cultural do Brasil para a América, delineia aspectos importantes dessa vertente. Ao defender a integração do continente, declarava-se completamente oposto à concepção de uma homogeneidade cultural que, a seu ver, apenas geraria conflitos entre as diferentes culturas americanas. Assim, era necessário “combinar a unidade com a variedade” (Freyre, 2003:47). Assinalava ainda que, diante da similitude, em termos de problemas graves enfrentados, ainda sem solução, tornava-se imprescindível o desenvolvimento de esforços de cooperação interamericana no estudo e no trato dessas questões – contribuindo para uma maior aproximação entre os povos das Américas.

Embora considerasse ou enfatizasse o regional – e aí a América tropical ou meridional era o território considerado –, não deixava de incluir os EUA e outros países da América anglo-saxã em sua concepção de política hemisférica ou interamericana. O que pretendia era sublinhar as diferenças, a diversidade, em oposição ao projeto de “americanização” pretendido pelos Estados Unidos. Contudo, ressaltava que esse estudo comum deveria ser “simpático, e não frio, sem amor, das diferenças. O estudo da maneira de conciliá-las sem esmagá-las, tanto depende delas a verdadeira saúde social e de cultura do continente”. (Freyre, 2003:51)

Ao analisar as representações estadunidenses que se opunham às visões preconceituosas em relação à América Latina, Ricardo Salvatore (2006: 143-168) assinala que, em alguns casos, a mescla racial assumia uma conotação positiva – ao contrário do discurso que dominara a primeira fase imperialista dos Estados Unidos que, para justificar os atrasos e carências da América Latina, utilizava como argumentos, a instabilidade política das novas repúblicas e a mestiçagem da população. Entretanto, a industrialização e a expansão dos mercados para produtos norte-americanos na América do Sul contribuíram para uma visão otimista sobre as relações raciais. Nesse contexto, o Brasil chegou a ser visto como um país que experimentava uma singular “democracia racial”, que o assemelhava a um crizol de razas (Salvatore, 2006:156) - uma concepção estabelecida por Freyre na década de 30.

Nesse contexto, escritores norte-americanos que criticavam as políticas de intervenção de seu país ressaltaram a necessidade de maiores conhecimentos sobre o subcontinente. Um desses intelectuais foi o predicador, educador e historiador Samuel G. Inman, que escreveu influentes críticas às diretrizes da política externa dos EUA e propagou a idéia de que profundos mal-entendidos em torno das diferenças culturais entre latino-americanos e norte-americanos eram obstáculos para a melhoria das relações entre os dos povos.

Essas análises de Salvatore relevam que a importância de matizar a questão do imperialismo norte-americano. Esse aspecto se constitui um ponto relevante para o estudo aqui proposto, pois amplia os horizontes de compreensão das relações interamericanas entre os anos de 1930 a 1954 para além do difundido discurso sobre o expansionismo estadunidense produzido pelos neomarxistas, teóricos da dependência e nacionalistas, que o definem como um “derrame” do centro à periferia de mercadorias, capital, tecnologia, força militar, visando reproduzir as relações de dominação e extração de mais-valia. O autor qualifica tal discurso como reducionista e economicista que não valoriza o papel da cultura.

Retornando a análise conjuntural, a imposição da nova ordem mundial pós-Segunda Guerra, com a consolidação da hegemonia norte-americana no continente e a deflagração da guerra fria, levou a um enfraquecimento do poder de pressão e barganha da América Latina. Neste momento, a grande maioria dos países alinhou-se aos Estados Unidos – entendendo que esta seria melhor alternativa para dar prosseguimento ao desenvolvimento de suas economias-, passando a negociar isoladamente com a grande potência regional, produzindo certo esvaziamento no ideário de integração latino-americana.

Diante desse quadro, o peronismo, em fins dos nos 40 até meados dos anos 50, constituiu-se num importante foco de resistência às imposições dos EUA, tentando recuperar o seu poder de barganha internacional. Buscou-se também revigorar os projetos de integração regional, através da reformulação do Pacto ABC, que contou com o apoio de Carlos Ibáñez, presidente do Chile, e de Vargas, em seu segundo governo de 1951-1954. Vale observar que esse momento se deu apesar de grande parte da classe dominante brasileira ser radicalmente contra a uma aproximação da Argentina de Juan Perón, preferindo um alinhamento irrestrito com a potência do norte.

No decorrer de suas duas presidências, entre 1946 e 1955, e especialmente ao longo de seu segundo mandato, 1951-1955, o governo de Perón procurou desenvolver um contínuo intercâmbio cultural com os países latino-americanos, visando difundir seu projeto político-ideológico expresso através da Terceira Posição. Sua adoção, em 1947 ocorreu em um contexto difícil para a América Latina, como anteriormente citado. Entretanto, o governo peronista insistia na necessidade dos países latino-americanos continuarem buscando uma maior autonomia frente aos dois blocos de poder então constituídos, não se aliando nem ao capitalismo nem ao comunismo, antecipando assim o movimento dos não-alinhados.

Nesse momento, setores aliados ao governo de Vargas procuraram intensificar as relações culturais com o país platino, pois concebiam que uma aliança do Brasil com a Argentina seria fundamental para possibilitar uma maior autonomia de suas economias. Entretanto, a falta de um posicionamento ideológico da UDN e dos militares de que a formação de um bloco econômico latino-americano poderia ser mais benéfica para a política externa do país do que a manutenção de um alinhamento dependente com os EUA contribuiu para o fracasso desse processo e impediu um desenvolvimento mais independente da região.

Mesmo diante do insucesso da proposta de integração econômica, é importante assinalar que houve significativos investimentos de ambos os governos na diplomacia cultural, pois no momento tornou-se premente desfazer visões distorcidas e antigos receios em relação ao país vizinho. Como exemplo cito as referências ao tema na correspondência de João Batista Luzardo, embaixador em Buenos Aires de 1951 a 1954. Mensalmente, o Instituto Cultural Brasil-Argentina, órgão apoiado pela embaixada, emitia um amplo boletim das atividades culturais de intercâmbio artístico e intelectual como mostras de cinema, exposições artísticas, exposição e venda de livros de autores brasileiros consagrados, missões intelectuais, visitas de professores e estudantes, inauguração de bibliotecas populares, entre outras.

III. As trocas simbólicas entre os países vizinhos através das Letras, Artes, Educação e Ciência

Nesta parte destacarei as principais formas de intercâmbio intelectual e artístico entre Argentina e Brasil durante os anos de 1930 a 1954. A intensa difusão cultural proporcionou um maior conhecimento da outra sociedade, paralelo à construção de um imaginário em torno das idéias de cooperação, de integração, de respeito às diferenças, de valorização da cultura nacional e latino-americana, visando à legitimação do projeto governamental.

Essas políticas de aproximação cultural contribuíram para a crítica de antigos estereótipos, preconceitos, desconfianças e outras imagens negativas pelas quais se estabeleceu o paradigma da rivalidade como um elemento intrínseco às relações argentino-brasileiras.

Nesse contexto, a busca por conhecer e interagir com a diversidade – num esforço de compreensão da alteridade – constitui-se no elemento fundamental para o entendimento dessas relações culturais. A ampla circulação de pessoas entre os países, ocasionada pelos incentivos ao turismo, as caravanas de estudantes, professores, trabalhadores, artistas, missões intelectuais, entre outros, contribuíram, em certa medida, para desmistificar o “outro”, uma vez que se passava a conhecê-lo melhor.

Dessa forma, toda essa efervescência cultural levou à construção de uma empresa del conocimiento, na concepção de Salvatore (2006:13), o que evidenciou o papel central do imaginário para legitimação não apenas dos projetos nacionalistas, mas também do ideário em torno da integração da América Latina.

1. O papel dos Institutos Culturais

Nos anos 30, foram fundados em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, espalhando-se por outras cidades argentinas e brasileiras como Rosário, Córdoba, Porto Alegre e São Paulo. Tal fato demarcou um novo momento de aproximação entre os dois países e, por sua vez, uma nova fase na história de suas relações. A dimensão cultural passou a fazer parte de ambas as agendas, sendo concebida como um elemento fundamental para a execução dos objetivos políticos e econômicos.

Dentre as atribuições dos institutos, as principais eram representar, ante as autoridades competentes, a conveniência de acentuar nos ensinos geral, normal ou comercial melhor conhecimento da geografia e da história do Brasil e da Argentina, desde a proclamação da República até o presente. O incentivo também se estendia ao ensino da língua e da literatura de ambos os países, além de outros estudos sobre sua produção científica, comercial e industrial. Para estimular o turismo, se promoveria à preparação de cursos breves de idioma e vocabulários elementares para o uso do viajante.

Uma característica relevante dos institutos culturais era o fato gozarem de autonomia formal, reforçando a idéia de que os intelectuais que apoiaram a política externa dos governos brasileiro ou argentino em prol de uma aproximação cultural com o país vizinho não foram manipulados pelo Estado, mas apoiaram suas políticas nessa área porque tinham afinidades com as idéias que as regiam. Portanto, a adesão da intelectualidade a essa diretriz política foi espontânea e, por outro lado, também interessada, pois, através dela, poderiam obter os recursos financeiros e operacionais que não dispunham para desenvolver seus projetos.

Os monumentos à fraternidade argentino-brasileira foi uma outra iniciativa cultural importante dos Institutos para reforçar o sentimento de amizade e cooperação. Em Buenos Aires, um busto em homenagem a “Tiradentes” foi inaugurado em 1946. Em São Paulo, um busto de “Bernadino Rivadavia” foi criado em 1945, em homenagem ao centenário do seu nascimento.

Todas essas atividades desenvolvidas pelos Institutos Culturais, além da organização de congressos, seminários, concursos literários, de monografias, de biografias, missões culturais, e de mostras de livros, cinema, música, arte, teatro, entre outras, revelam a importância fundamental dessas instituições na difusão e no fomento de atividades de cooperação cultural entre Argentina e Brasil. Essas atividades envolviam a participação não apenas políticos e intelectuais vinculados ao Estado, mas, como demonstrado, também de vários setores da sociedade civil, inclusive a iniciativa privada que, em vários momentos, contribuiu na propaganda e com recursos financeiros durante a realização dos diversos projetos culturais entre os dois países.

2. As traduções de obras para o espanhol e para o português

Os governos de Justo e Vargas criaram políticas para promoção de empreendimentos editoriais entre Argentina e Brasil através da tradução de autores do Espanhol e do Português. Paralelamente, a efervescência intelectual do período em torno do americanismo estimulou as relações literárias e editoriais entre ambos os países. De acordo com Gustavo Sorá (2003:108), o ano de 1937 emergia como o mais fecundo dessas relações, quando foram criadas a Biblioteca de Novelistas Brasileños, da Editorial Claridad e a Biblioteca Autores Brasileños Traducidos al Castellano, editada pelo Ministerio da Justicia e Instrucción Pública. Ambas marcariam a fundação, em paralelo, dos parâmetros fundamentais para a circulação da cultura escrita nas sociedades nacionais.

Além dessas bibliotecas, procurando reunir autores representativos do que considerava ser a brasilidade e os maiores problemas políticos e sociais do país, publicou Quijote de los niños, de Monteiro Lobato (1938) e Proceso del Estado Corporativo, de Pedro Motta Lima e José Barbosa de Mello. Na Biblioteca de Obras Famosas foram editados Los Sertones. La tragédia del hombre derrotado por el médio, também de Euclides da Cunha (1942, n. 75) e a primeira edição de Vida de Luiz Carlos Prestes. El Caballero de la esperanza (1942, n. 77), biografia escrita por Jorge Amado.

Em outra coleção, Biblioteca de Grandes Biografias foi incluída La vida heróica de Juana de Arco (1944), escrita por Érico Veríssimo e traduzida por Matilde de Elia Etchegoyen, como também Eça de Queiroz: el arquétipo del siglo XIX (1945) de Viana Moog. Na Biblioteca Hombres e Ideas - El pensamiento y la acción puestos al servicio de la causa de un mundo mejor publicou-se a biografia Osvaldo Cruz. El Pasteur del Brasil, vencedor de la febre amarilla, de autoria de Phoción Serpa. No ano de 1945, também foi editado De la necesidad de ser polígamo, texto de teatro escrito por Silveira Sampaio, com tradução de Benjamín Garay, e El padre Anchieta: vida de un apóstol en el Brasil primitivo, de Celso Vieira.

No Brasil, em paralelo a essa política editorial argentina, saiu a Coleção Brasileira de Autores Argentinos. A Comissão Revisora brasileira foi presidida por Pedro Calmon, um historiador tão prestigiado quanto Levene, que dirigiu a Comissão argentina. De acordo com Sorá, no plano das idéias e no plano editorial, ambos os conjuntos de livros devem ser compreendidos como espécies oficiais de um gênero de coleções de ensaios de interpretação das realidades nacionais. A coleção iniciou-se em 1938 e terminou em 1951, totalizando nove volumes traduzidos por J. Paulo de Medeyros.

Os livros traduzidos foram: Síntese da história da civilização argentina, de Ricardo Levene (1938), com prefácio de Pedro Calmon; De Caseros al 11 de setiembre, de Ramón J. Cárcano (1939), com prefácio de João Neves; Orações seletas de Bartolomeu Mitre (1940), com prefácio de Oswaldo Aranha; Bases de Juan B. Alberti (1941), com prefácio de Afrânio Mello Franco; Vidas Argentinas, de Octavio Amadeo (1942), com prefácio de Octávio Tarquínio de Souza; Seis Figuras do Prata, de Juan P. Echagüe (1946), com apresentação de E. Tourinho; O Santo da espada, de Ricardo Rojas (1948), com prefácio de Augusto F. Schmidt; Mitre, de Rodolfo Rivarola (1950), com prefácio de Álvaro Lins e Recordações de província, de Sarmiento (1951), com prefácio de Acácio França.

3. Entrelaçamento de alteridades através das Artes

O intercâmbio artístico é outro capítulo relevante na história das relações culturais entre Brasil e Argentina no período sob estudo, impulsionado, em grande medida, pelos acordos bilaterais no campo cultural. O expressivo fluxo de escultores, pintores, literatos, músicos, atores, etc., entre os dois países marcou um momento de descoberta do “outro” até então quase desconhecido.

Ao traçar um panorama da vida e da obra de alguns dos principais pintores brasileiros contemporâneos 5que haviam recentemente exposto seus quadros na Argentina, considerando a importância deles, o interventor do Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires, Jorge Romero Brest, elogiou a iniciativa do diretor do Museo de Bellas Artes de La Plata, o pintor argentino Emilio Pettoruti, pela realização de exposições de obras de 20 desses artistas na sua cidade, entre os dias 2 a 19 de agosto de 1945, e, em seguida, em Buenos Aires, de 25 de agosto a 7 de setembro.

Brest afirmou que a pintura brasileira era bem distinta da argentina, até em seus aspectos técnicos – o que não se podia estranhar, uma vez que a técnica verdadeira somente era o instrumento da alma – porque expressava uma realidade diferente, em seus aspectos materiais, de natureza e condição humana e na sua formação espiritual por meio do jogo de “influências estranhas”. Entretanto, ressaltava

Hagamos un esfuerzo, pues, los hombres del sur de este continente, los que tenemos raíces hispánicas y una arborescencia italiana, francesa, inglesa o alemana, para comprender con emoción esa realidad indígena, lusitana y negra que comienza a expresarse con facundia feroz en todos los planos de la cultura brasileña. (Brest, 1945:9)

A concepção de um diálogo curioso e interessado entre duas identidades culturais distintas – a argentina e a brasileira – permeava o espírito da época de maior tolerância e compreensão com outra sociedade. No campo artístico, essas trocas de experiências foram vistas como positivas, pois contribuiriam para um enriquecimento mútuo, além de possibilitar ao grande público ter acesso a essa outra realidade.

Apesar desse confronto de identidades apontado por Brest, ao afirmar que a pintura brasileira poderia parecer um conjunto de influências estranhas aos olhos do argentino, a grande maioria das artes nesse período na América Latina demonstrava preocupação com a questão da identidade nacional e com a temática social. Suas origens se remetiam ao movimento modernista dos anos 20.

Segundo Maria Helena Capelato (2005:255), no final dessa década na América Latina, a exemplo do que ocorria na Europa, houve uma crescente politização da cultura, retornando-se à discussão sobre o uso da palavra “vanguarda”, expressando a clássica oposição entre a “arte pela arte” e a “arte engajada”. Nesse contexto, a maioria dos artistas latino-americanos revelou preocupação com os problemas das suas respectivas sociedades.

A tentativa de recuperação das origens esteve, em geral, associada a uma valorização da cultura popular e de suas tradições. O muralismo mexicano, como representação de uma nova arte social, foi a expressão mais importante dessas mudanças.

Em função de todos esses movimentos que influenciaram o campo das artes, já havia uma expressiva mobilização da classe artística da Argentina e do Brasil com o intuito de promover uma aproximação cultural. Nesse sentido, os subsídios governamentais foram fundamentais na concretização desse propósito. Dessa maneira, é que deve ser pensado o papel das artes no intercâmbio entre as duas sociedades, pois, ao mesmo tempo em que atendia aos interesses políticos e econômicos, também fazia parte dos anseios de melhor conhecimento recíproco. Assim, a partir desse momento, o intercâmbio atinge um patamar diferenciado.

4. A Escola como difusora do pan-americanismo

O intercâmbio escolar foi um outro aspecto expressivo na aproximação cultural da Argentina e do Brasil, que contou com uma ampla participação de professores e alunos dos dois países. Esse fluxo contínuo, entre os anos 30 a 50, estimulou a criação de inúmeras delegações, escolas em homenagem a ambos os países, concursos de redação e de poesia, concessão de bolsas de estudo a fim de desenvolver pesquisas sobre o país vizinho e até mesmo a implementação de uma proposta pedagógica inovadora, com o objetivo de estimular o sentimento de fraternidade continental nos alunos em relação aos demais países americanos – especialmente, entre argentinos e brasileiros.

Tratava-se do pan-americanismo escolar que, tanto na Argentina como no Brasil, havia se iniciado nos anos 20, através de políticas educacionais. Em 1922, o Consejo Nacional de Educación argentino, através de um decreto, designou as escolas de Buenos Aires com o nome das seguintes repúblicas latino-americanas: Estados Unidos do Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Costa Rica, Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Panamá, São Salvador, Oriental do Uruguai e Venezuela.

Por meio dessas escolas, o corpo docente e alunos deveriam promover atividades escolares – como a comemoração de datas cívicas, palestras, exposições, o canto do hino nacional, a confecção de bandeiras nacionais, a recepção de personalidades, etc. –, que contribuíssem para estreitar os vínculos amistosos com as repúblicas irmãs. Tal medida foi bem recebida pela imprensa brasileira, como atesta o artigo “A escola a serviço da paz”, da Gazeta de Notícias, de 3 de fevereiro de 1925, que elogiava a resolução do Conselho de Educação argentino como “altamente simpática”. O texto ainda acrescentava que a intenção dessa política era a de preparar as novas gerações em um ambiente mais saturado de idéias de paz e cordialidade internacional.

A construção do edifício da Escola República do Brasil foi muito longa e demorada. Somente em 15 de novembro de 1933 foi inaugurado. Depois disso, foram criadas mais oito escolas, com o mesmo nome, em várias províncias argentinas. Uma delas era escola normal. Também foi fundada a “Escuela Quintino Bocayuva”, em Buenos Aires. Essas escolas existem até hoje, mas pouco mantém do seu caráter pan-americano. Geralmente, apenas em ocasiões muito especiais, como a independência do país patrono, o ideário de fraternidade americana é relembrado.

No Brasil, o pan-americanismo escolar surge com Carneiro Leão, diretor geral da Instrução Pública do Rio de Janeiro (1922-1926). Ele iniciou uma série de homenagens aos países americanos, nomeando vinte escolas com seus nomes. Esperava-se que essas escolas contribuíssem para a criação de um sentimento de união, de solidariedade e de cooperação continental em defesa da liberdade. A administração de Fernando de Azevedo (1927-1930) deu continuidade a essa prática.

Entretanto, assim como o nacionalismo, o pan-americanismo assumiu uma projeção maior na década de 1930, sobretudo na gestão de Anísio Teixeira na Secretaria de Educação do Distrito Federal (1931-1935). As escolas criadas homenagearam os seguintes países latino-americanos: Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Venezuela e Argentina. Atualmente, essas escolas são administradas pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Porém, sua proposta pedagógica foi desvinculada do projeto original.

Mesmo interrompendo o seu trabalho, em 1935, quando pediu demissão de seu cargo devido a pressões políticas – estava sendo acusado de participar da revolta comunista liderada por Luis Carlos Prestes –, Anísio Teixeira implantou uma proposta pedagógica inovadora – relacionada ao movimento “escolanovista” -, nas escolas fundadas durante a sua gestão, o que contribuiu para o processo de modernização cultural pelo qual passava a capital carioca.

Nesse contexto, merece destaque a Escola Argentina que, além de promover atividades culturais de aproximação com o país vizinho, tornou-se uma das escolas “experimentais” da capital brasileira. Os resultados positivos desse trabalho pedagógico eram constatados nas cartas que os alunos brasileiros escreviam aos argentinos que foram publicadas na revista produzida pela escola:

“A nossa escola é um pedaço da pátria Argentina...”; “... pudessem estar presentes à nossa festa para sentirem, mais de perto, o carinho, o amor, a dedicação com que cultuamos os nomes e a data gloriosa do torrão de vocês”; “... que a Argentina e o Brasil sejam um só coração a palpitar, trabalhando pelo progresso e pela paz do mundo”. (Chaves, 2007:162)

Assim, construía-se a imagem do país vizinho como amigo. A criação de um sentimento de amizade, em relação ao Brasil, também foi trabalhado de maneira competente pelas escolas argentinas. No ano de 1952, em uma carta ao governo brasileiro relatando as comemorações na capital portenha em torno da Independência do Brasil, Luzardo anexava a redação de Néstor Oscar Suárez, da 6a série, falando da confraternidade argentino brasileira:

[...] Calificar de fraternales las relaciones entre Brasil y Argentina significa transpuser los limites de la cortesia internacional, para estrecharmos en un abrazo espontáneo, nacido del afecto, que cabija a toda América, porque es América, el milagro que nos ha convertido en hermanos bajo la Cruz del Sur [...] Brasileños y argentinos, tenemos un trabajo común, por el hemos luchado en el pasado, y por él estamos labrando el porvenir. Noble tarea porque de ella aguarda la civilización, el triunfo de la justicia y de la libertad...6

Dessa forma, através das escolas “brasileiras” e das “argentinas” procurou-se criar um sentimento de fraternidade entre os alunos, professores e demais membros da comunidade escolar em relação ao país vizinho. Contudo, a descontinuidade dessas políticas, em função das constantes oscilações nas relações bilaterais, comprometeu o desenvolvimento dessa prática pedagógica.

5. Intercâmbio intelectual e científico

A cooperação entre os médicos argentinos e brasileiros foi a mais intensa do período sob estudo, como mencionado anteriormente. Dessa forma, o intercâmbio entre as Academias Nacionais de Medicina de Buenos Aires e do Rio de Janeiro era um bom exemplo de como essa parceria poderia trazer resultados profícuos para ambas as sociedades. Essa cooperação científica já era tradicional entre os dois países, ocorrendo desde o século XIX. Os graves problemas de saúde pública traziam sérias dificuldades no relacionamento comercial e político de ambos os governos. Por esse motivo, fazia-se necessário encontrar soluções conjuntas para a manutenção de um bom entendimento entre essas economias complementares. Além desse intercâmbio, outras formas de cooperação ocorreram no campo industrial, comercial, educacional e até mesmo no militar 7.

No Brasil, essa estrutura de relações culturais interamericanas foi organizada a partir do Itamaraty, Ministério da Educação e do DIP. O principal veículo de difusão da intelectualidade latino-americana no país foi o “Pensamento da América”, suplemento do jornal A Manhã. Essa seção teve uma publicação regular de agosto de 1941 a fevereiro de 1948. Divulgava, em suas páginas, tudo o que fosse relativo ao “espírito pan-americano”. Através do suplemento, os leitores brasileiros poderiam ter acesso a artigos sobre literatura, música, história, artes plásticas, política, folclore, dança, geografia, urbanismo. Em suma, toda espécie de atividades culturais provenientes do continente americano.

Na Argentina, o intercâmbio intercontinental era realizado, principalmente, pela Comisión de Copperación Intelectual, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores. Também foi assinada uma série de convênios e acordos culturais com países do continente. Obviamente, tais acordos foram muito maiores e mais amplos com os países de língua espanhola, se os compararmos com os feitos com o Brasil. Contudo, a oposição da maioria da intelectualidade argentina ao projeto cultural peronista criou barreiras ao intercâmbio.

No entanto, vários intelectuais argentinos de renome aderiram ao regime e trouxeram contribuições importantes para conferir legitimidade à sua política cultural. Merece destaque também a expressiva participação de diversos setores da sociedade civil, como professores, estudantes, trabalhadores, cientistas, escritores, juristas, médicos, etc.

Os setores da intelectualidade críticos a esses governos tentaram deslegitimar suas ações, tanto na esfera política quanto na cultural, também promovendo o intercâmbio entre os dois países. Um exemplo bem significativo foi o dos intelectuais brasileiros que se exilaram em Buenos Aires devido à repressão do Estado Novo - como Jorge Amado e Monteiro Lobato. Durante sua estadia na capital portenha, aproximaram-se dos intelectuais e do mercado editorial argentino e publicaram suas obras em espanhol.

Do lado argentino, Victoria Ocampo e outros intelectuais contrários ao peronismo usaram a literatura como uma forma de resistência e mantiveram um constante diálogo com a intelectualidade brasileira e de outras partes do continente, conforme atestam as contribuições de Jorge Luis Borges em jornais brasileiros, como o suplemento “Pensamento da América”.

6. A inserção dos Trabalhadores nas políticas estatais através do intercâmbio sindical

Procurando reforçar a ideologia de seu regime, Perón conferiu um novo papel importante aos trabalhadores: o de adido operário. Dessa forma, esse segmento tornou-se um relevante agente na aproximação política e cultural entre o regime e os demais países do continente. Nesse contexto, cabe assinalar que o justicialismo argentino encontrou expressiva acolhida no trabalhismo brasileiro - grande parte das lideranças sindicais, como também o Ministro do Trabalho João Goulart, além de outros políticos, intelectuais e outros grupos da sociedade civil, apoiaram ou participaram diretamente do intercâmbio sindical.

Em 1952, Noticias Gráficas noticiava a viagem de uma delegação da Central de Trabalhadores argentina ao Rio de Janeiro, a fim de participar da Quinta Conferência dos Estados da América da Oficina Internacional do Trabalho (O.I.T.):

La delegación encabezada por el titular de la Central Obrera, señor José G. Espejo, y la integran representantes de diversas entidades sindicales de nuestro país. En calidad de asesores acturán el secretario adjunto de la Confederación General del Trabajo señor Florêncio Soto; Mariano Vergara, de la Federación Argentina de Sindicatos Agrícolas; Hector H. Di Pietro, de la Asociacuión de Trabajadores de Casas de Renta y Juan Garone, secretario de la delegación.

(Noticias Graficas, 1952:5)

Membros do Instituto Cultural Argentino-Brasileiro receberam a delegação operária argentina no aeroporto do Galeão, o que demonstra o interesse do Instituto na cooperação sindical. Afinal, fomentar o intercâmbio bilateral era sua principal atribuição. Fato relevante também foi o evento em si, que reuniu delegações de todo o continente, destacando o nível de organização sindical do período e a importância da conquista de seu apoio às políticas estatais.

Contudo, a política trabalhista peronista foi veementemente repudiada pelos setores contrários a uma aproximação com a Argentina, que defendiam que a melhor alternativa para o desenvolvimento do Brasil seria ampliar os vínculos com os Estados Unidos. Além disso, tais setores viam com certo temor a possibilidade de uma revolução liderada pelos sindicatos.

III. Considerações finais:

Finalizando, concluo que o grande e contínuo fluxo de intercâmbios entre Brasil e Argentina no decorrer dos anos de 30 e 50, com alguns períodos de refluxo - em decorrência das tensões e conflitos devido às divergências ideológicas e disputas políticas e econômicas entre os dois países -, promoveu uma grande mobilização de atores estatais, não-estatais com uma ativa e expressiva participação de vários grupos da sociedade civil. Essas diferentes formas de cooperação cultural contribuíram para a desmistificação do “outro” – o argentino ou o brasileiro – que passaram a se compreender melhor, levando ao questionamento do imaginário da rivalidade.

Além disso, esses projetos estavam associados a interesses políticos e econômicos que concebiam a integração regional como uma estratégia para ampliar a cooperação entre os países e promover um maior desenvolvimento e autonomia da América do Sul, consolidando a idéia de criação de um bloco econômico como ficou expresso na proposta do Pacto ABC.

Dessa forma, comprovo que a análise das relações argentino-brasileiras sob o prisma cultural traz novas interpretações sobre o período de 1930 a 1954, demonstrando que os regimes nacionalistas desses anos, tradicionalmente classificados como autoritários e rivais, também abriram significativo espaço para a cooperação c cultural entre suas sociedades com o intuito de criar as bases de um processo de regionalização sul-americano.



*Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Coordenadora do Laboratório de Estudos Brasil na América do Sul – LEBAS/TEMPO/UFRJ e Pesquisadora do LEAL.



Notas:

1 Paradigma dominante que privilegia os aspectos políticos, econômicos e militares nas relações entre os Estados. A preocupação central do Realismo é a guerra e a paz. Como conseqüência, os estudiosos filiados a essa vertente se preocupam fundamentalmente com a questão da manutenção da segurança nacional contra as ameaças militares exteriores. Seu surgimento está relacionado à crise liberal dos anos 20, mas, para fundamentar as bases do pensamento realista, os seus mentores retrocedem a Tucídides, Maquiavel e Hobbes.

2 Corrente teórica que defende a valorização da dimensão cultural nas relações internacionais, pois, na sua concepção, o poder é constituído, sobretudo, por idéias e contextos culturais. Assim, idéias compartilhadas das quais se originam as normas, as instituições, os valores, etc., dão significado à distribuição do poder através de percepções ou identidades de interesses. Portanto, a cultura constitui-se num elemento fundamental para a compreensão da realidade.

3 Esta mudança pode ser comprovada pela crescente preocupação com a ampliação e melhor organização do setor cultural do Itamaraty ao longo das décadas de 1930 a 1950. Essas reformas também refletiram o grande interesse na profissionalização do corpo diplomático, garantindo maior eficiência em sua atuação e, ainda, a ampliação de seu vínculo com a política estatal.

4 Os acordos culturais e convênios tiveram a adesão da Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai.

5 Os trabalhos expostos foram dos seguintes pintores: Tarsila do Amaral, Iberê Camargo, Hilda Campofiorito, Quirino Camporiorito, José Bernardino Cardoso Junior, Rubem Cassa, Lucy Citti Ferreira, Milton Dacosta, Percy Deane, Cícero Dias, Emiliano Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Oswaldo Goeldi, Djanira Gomes Pereira, Francisco Rebolo Gonsales, Clovis Graciano, Alberto da Veiga Guignard, Percy Lau, Carlos Leão, Roberto Burle Marx, José Morais, Alcides Rocha Miranda, José Pancetti, José Alves Pedrosa, Cândido Portinari, Tomás Santa Rosa Junior, Carlos Scliar, Lasar Segall, Orlando Teruz,e Aldari Henriques Toledo.

6 Arquivo Histórico do Itamaraty: Anexada a carta de Luzardo a Vargas. Buenos Aires, 11 de setembro de 1952.

7 Em várias cartas de embaixadores, artigos de jornais, encontrei informações sobre visitas de estudantes aos colégios militares e missões de cooperação de militar entre Argentina e Brasil.

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